quarta-feira, 6 de agosto de 2008

EM política, QUERO SABER TUDO

QUERO SABER TUDO

É um direito que tenho. Por eles, vou sair de casa e votar numa urna eletrônica; a partir daí, para o bem ou para o mal, eles me representarão. Exatamente por falarem em meu nome, quero saber tudo sobre os candidatos. Em primeiro lugar, a idade, a profissão, a capacidade de escutar o que os outros tem para dizer. Depois, como é sua família, se seus filhos são estimulados a estudar, se lêem, se são alegres e bem resolvidos, se a esposa não é apenas um enfeite ou uma vaquinha de presépio. Afinal, é deste nicho doméstico que eles saem, mais ou menos agressivos, mais ou menos atenciosos, mais ou menos saudáveis da cabeça.
Tenho medo dos políticos. Aprendi com Maquiavel que, em matéria de poder, não importam os meios desde que os fins sejam atingidos. Tenho medo porque, passados tantos séculos depois de Maquiavel, muitos políticos continuam pensando exatamente isso. Não entraram nas esferas da ética, mantiveram-se como aduladores, fazedores de conchavos aos quais nunca temos acesso.
Acordos políticos vão muito além das coligações que assistimos há pouco tempo nas convenções partidárias. Os maiores acordos acontecem na calada da noite, atrás de copos de uísque, com palavras ditas em baixo tom para que ninguém escute. Sempre envolvem questões de dinheiro, de protecionismo, de compadres, de ganhos pessoais. De vez em quando ainda se coloca mulheres no meio dos negócios e há quem registre sordidamente os encontros para futuras chantagens. Enquanto eles andam de carrões, a justiça do país caminha sobre carros de boi ou charretes engalanadas, dependendo do grau do magistrado.
Há sempre um palhaço de plantão. Ele é ótimo pois desvia as atenções do distinto público, o qual, perdido frente a tal parafernália de campanha, é tangido a votar com os dedos, mas sem usar a cabeça.
Tem mulheres que votam em candidatos bonitos; tem outras mulheres que não votam em mulheres porque acham que elas não são capazes de fazer boa política. A inconsistência dos eleitores provoca o desastre na composição dos governos. Por isso preciso saber tudo sobre eles: os políticos e o povo. E este, é um processo muito dolorido. São as dores do parto de uma verdadeira democracia.

PAI

PAI

Nada mais justo do que dedicar estas linhas a você. Sinto tanta saudade da sua terna presença e, no entanto, ainda me surpreendo a querer lhe contar qualquer coisa que me aconteceu de especial. Só que o telefone não funciona mais. Você não se encontra sentado ao lado do aparelho, lendo seu jornal ou o último livro do pedaço; tudo ficou para trás na espiral do tempo, como soe acontecer em todas as famílias. Bem dizia um amigo, “a orfandade é uma merda”.
Sou uma órfã velhinha, quando você partiu eu já tinha 57 anos, nem por isso a tristeza foi menor. Talvez o tempo tenha me dado a real dimensão do que um pai é capaz. E, creia, meu velho, um pai pode tudo porque tem um manancial inesgotável de sentimentos bons. Tirando os degenerados mentais de quem a justiça tem dado conta, os pais são uma instituição que não caiu fora de moda. As mulheres que gostam de produção independente, que me perdoem, elas não tiveram um pai como o meu. Que outra pessoa poderia ter tanto carinho ao levar meus dedos pelas letras de uma página e ensinar o significado das sílabas? Quem mais me faria amar o chão, a chuva, os pássaros e as plantas como essenciais para o gáudio da nossa vida? Que outra pessoa me contaria aventuras de caça e pesca com tanto realismo que eu me sentia dentro delas? Qual homem sobre o planeta me daria broncas apenas com o olhar e encerraria as mesmas dizendo somente: “nunca mais faça isso”?
Meu pai não julgava as pessoas de maneira leviana. Ajudava os necessitados sem que os outros percebessem. Não era rico, mas fazia de sua essencialidade uma profunda riqueza. Tinha uma casa e era grato por isso. Não faltava comida, então sempre cabia mais um em sua mesa. Até o último dia foi verdadeiro comigo, mesmo para dizer que estava morrendo. Tive que concordar, pois era só a verdade que lhe interessava. Teve os olhos brilhando para mim enquanto viveu, e me serviu de facho luminoso nos momentos mais sombrios da minha vida. E, foi por ele que aprendi a amar os outros homens, inclusive àquele a quem emprestei meu ventre para se tornar pai dos meus filhos. Abençoados sejam os homens da minha vida.
Sua filha,
Ivone

quinta-feira, 17 de julho de 2008

TELEVISÃO - SÓ "HOUSE" e alguma notícia

Meus amigos:

Creio que ultimamente temos bem pouco a nos agradar na vida política, social e econômica do país e do mundo. Abro os jornais diariamente e caio de costas com as notícias mais disparatadas. Leio o que interessa, vejo as tabelas climáticas, acompanho pela rama as intrigas na administração superior do país, me irrito com a parte internacional, confiro o necrológio e sigo para a parte cultural do periódico. Não deixo de ler as HQ e resenhas de filmes, livros e músicas. Paro por aí, já é suficiente. Na parte da tarde a vida corre no escritório. Tem sempre um monte de leituras a fazer, cartas a responder, internet a consultar.
As 17:00 horas paro com tudo. Intermezzo para namorar, afagar o gato, tomar banho, depois, jantar. Se ficamos em casa, temos que fazer alguma coisa. Muita gente vê televisão, acompanha notícias e novelas, depois algum filme terrivelmente dublado. Não aguento isso. Se algo especial acontece, vejo notícia. Se nada de novo se coloca, a casa permanece em doce silêncio até a hora do "House". E que ninguém telefone. House inunda minha vida de maneira deliciosa. Heroi políticamente incorreto, mal-humorado, mulherengo, viciado em analgésicos, ele tem o dom de perseguir as mais incríveis patologias com uns insights fabulosos. Bem que todos iam querer um médico assim. Os roteiros são magistrais e os artistas da série soberbos. Quando acaba House, desligo a tv e abro um suculento livro. Bom demais, não é?
Ivone

ASSÉDIO

AS VÍTIMAS DO ASSÉDIO
Este tema tem sido abordado de formas variadas, principalmente a forma sexual, uma vez que o sexo faz parte da intimidade mais restrita das pessoas e é por esse viés que elas se sentem mais atingidas. De um tempo para cá, ganhou vulto a imagem do assédio profissional, muito comum também nas empresas e repartições onde o jogo de poder fica bastante explícito. Em ambos os casos, a figura do aproveitador é evidente; assim, vencido o medo do assediado, é possível tomar medidas práticas e mesmo jurídicas contra os que se usam de métodos excusos para agarrar sua presa ou obter dela comportamentos que lhe ferem as vontades. Mas há um instrumento bem banal, que se tornou um inferno na vida do cidadão comum. É o telefone.
O telefone encurta distâncias, economiza tempo, mas também franqueia nossas casas a invasores sem rosto, escondidos atrás de algum telemarketing. Resolvi contar o número de telefonemas que recebemos em casa para oferta de “produtos bancários” e de financiadoras. O número destas ligações superou três vezes as ligações recebidas de parentes e amigos. Quantas vezes precisei sair do banho, interromper uma refeição, um filme, uma leitura ou um trabalho de redação para atender àquela voz de aluguel que me propõe um negócio da China? Em casa, somos três pessoas que tem vida cadastrada e controlada como adultos normais. Não bastasse o lixo de papel que nos chega pelo correio através da venda odiosa de mala postal, ainda temos que conviver com o assédio de bancos, dos quais nem somos correntistas, que nos oferecem seus cartões, seu crédito, suas grandes vantagens, como se fossem nossos guardiões. Pior, o funcionário do telemarketing, quer nos repassar para um “consultor especializado”, e acaba levando uma saraivada de xingos que se agravam na medida em que o nosso saco vai ficando cheio. E eles persistem. Parecem carrapatos. Grudam no número do nosso telefone como se dele se alimentassem. E é assim mesmo que acontece. Os coitados ganham pouco e tem que suportar nossas explosões. Baixos salários para apanhar muito.
Tudo em nome de um patrão ganancioso e cruel.

terça-feira, 1 de julho de 2008

DE OLHOS ABERTOS

DE OLHOS ABERTOS

Se eu passar por uma rua onde tem um botequim,
E lá dentro uma louquinha bebe,
Se ela sair num repente alucinado e
Quase se jogar sob um carro de passante.
Se eu esquecer que ela existe e não tem roupas,
Nem calçados, nem ninguém;
Se os meus olhos desviarem e seguir em frente
Pensando apenas no presente do meu filho,
Tenha certeza, amigo, merecerei o escárnio dos anjos
E o desprezo dos céus.
Não pode ser festa a quem não sabe
Da dor alheia, da fome dos irmãos.
Não terá tempo novo quem não vive
O tempo velho com os olhos bem abertos.

Minha cidade há de acender as luzes
E catar em cada esquina um menor abandonado.
As mãos sensíveis levarão os curativos
Às feridas supuradas dos carentes.
Flores nas praças são colírios para os olhos,
Mas há de ter lugar aos namorados
Que o medo se esvaneça sob a lua,
Que sonhar volte a ser bom exercício.
Abram-se as janelas, cumprimentem-se os vizinhos,
Troquem os docinhos, falem do futuro.
Quero dançar na praça uma valsinha
Ao som da banda, ao lado do coreto. Dormir em paz,
É o sonho que acalento
A ti, a mim e a quantos estejam
de olhos bem abertos.

sábado, 28 de junho de 2008

REFLEXÕES SOBRE A PATERNIDADE

REFLEXÕES SOBRE A PATERNIDADE, OU, A NOSTALGIA DO PARAISO PERDIDO

Se vivo fosse, meu pai completaria 97 anos de idade. Quis a boa sorte que vivesse até os 91, e que eu dispusesse de uma deliciosa cumplicidade consigo durante 56 anos de minha vida. Ele era um homem muito simples, conhecedor das coisas da terra, hábil plantador do chão, humilde de origem, autodidata de formação. Vinda da terrinha mãe portuguesa, a família se aquietou nesse Brasil, comprou terras, fez horta, criou ampla filharada, sobreviveu à gripe espanhola, mas o casal teve morte precoce, deixando meu pai, aos 10 anos, completamente órfão e sem o cuidado dos irmãos mais velhos. Nem por isso virou um rebelde malvado. Nesta idade, tinha juízo para estar com pessoas boas, e muito cedo foi aquilo que hoje pejorativamente classifica-se como mão de obra infantil.Trabalhou para comer e dormir; em 1932 tinha carta de motorista e alistou-se para defender a causa constitucionalista de São Paulo, foi ao campo de batalha e retornou em bom estado para ajudar a reerguer a moral paulistana. Aos 28 anos, casou-se com uma foragida dos Balcãs e, aos 35, tornou-se meu pai.
Como se julgava incompetente para ajudar aos meus irmãos e a mim na escola, consultava-se com os amigos sobre os livros que deveria nos comprar. Comprou muitos, e nos conduziu pela trilha de uma cultura que a ele o destino negara. Soube aplacar minha mãe nos momentos da neura total, jamais surrou um filho, mas tinha sobre nós uma autoridade que não carecia de palavras, apenas de olhares.
Em 1985, vestiu-se bonito e foi assistir minha defesa de doutorado. Tinha um orgulho das minhas conquistas porque naturalmente se entendia como parte delas. Amava as crianças e dizia que o mundo podia ser “salvo” pelas gerações futuras; jamais censurou a maternidade de mães solteiras, desconheceu preconceito racial, abominou as guerras e valorizou o trabalho como redentor das pessoas e das sociedades. Internado, no último dia de sua vida, alertou-me que estava morrendo. Confirmei. Depois cantei para ele. Cantigas de ninar. Cantei embargada até perder a voz. Embalei-o até que adormeceu...
Ivone

sexta-feira, 27 de junho de 2008

PARA A MAMÃE DESESPERADA

Minha vizinha divorciada de 40 anos está paquerando meu filho de 16, e o pior, é que ele gosta...
Querida Jocasta:
Confesso que sua carta me divertiu muito. Imagino o bebê, a quem você retirou recentemente das fraldas, às voltas com uma pedófila fogosa, dona de perigos e conhecimentos que você nem suspeita... Lembrou-me um filme antigo de muito sucesso chamado “A primeira noite de um homem”. Pelo menos naquele filme o mocinho (Dustin Hoffman,1967) era ingênuo de verdade, mas eu aposto uma trufa de maracujá que os garotos de 16 anos de hoje, nada tem daquela inocência antiga. Também, pode desencanar, pois o seu guri nem de longe pretende lhe substituir.
Recorda-se de como antigamente os meninos eram iniciados? O pai, ou os amigos mais velhos, em certa noite de corujas piadoras, levavam o postulante a macho para a zona e pagavam uma tia maquiada como arara para fazer o adolescente virar homem. Era isso que você gostaria para seu filho? Ou então preferiria que ele desse uma rapidinha com a colega de classe, atrás do muro do colégio?
Sai dessa, minha amiga. Logo, ou ele se enjoará das manias dela ou ela se cansará de ser objeto das transas infantis e apressadas do seu filho. Digamos que, nesse momento, ele está testando sua masculinidade e ela calibrando sua capacidade de sedução. Não há amor que resista a tanta curiosidade distonante. Se você interferir nesta paixão de minuto, não só cairá no ridículo como correrá o risco de ganhar de presente aquele CD horrível que diz que panela velha também faz comida boa.
Mas há coisas positivas que você pode fazer por seu filho. Uma delas é dialogar bastante sobre coisas da vida. Coisas simples, coisas de amiga. Outra, é comprar para ele uma embalagem hospitalar de camisinhas e, sugerir ao menino que sexo seguro é coisa de cidadão de respeito.
Carinhosamente,
Ivone

quarta-feira, 25 de junho de 2008

GREGÓRIO DE MATOS DEVIA ESTAR VIVO

GREGÓRIO DE MATOS DEVIA ESTAR VIVO

Para quem gosta, a leitura é o pão da alma. Vive-se dela, cria-se um caso amoroso com as palavras, os sonhos, as histórias. Se a leitura for mais consistente, bebe-se dela o caldo saboroso das comparações. Caiu-me nas mãos esta semana o genial livro de Ana Miranda intitulado “Boca do Inferno”, romance histórico sobre a participação do Padre Vieira e de Gregório de Matos nas confusões políticas da Bahia do século XVII. “Boca do Inferno”, para quem não sabe, era o apelido que se dava ao poeta Gregório pelos poemas satíricos e agressivos que ele fazia cair no agrado do povo e o povo repetia como hoje repete o Créu e outras baixarias mais. Porém, naquele longínquo século XVII, a língua maldita de Gregório tornava-o um perigo para os governadores, alcaides, bispos e outros poderosos da época. Sua malignidade era tão devastadora que ele acabou sendo deportado para África, donde voltou para falecer aos 59 anos, em Pernambuco. Enquanto o Padre Vieira levava uma vida conventual e dedicada à escrita de cartas e Sermões, Gregório vivia entre as putas e os renegados; perdeu seu cargo eclesiástico porque não renunciou às orgias e à dissipação dos seus bens. Foi perseguido, preso, apanhou de asseclas dos governantes, refugiou-se nos prostíbulos, entre judeus e todos que a coroa portuguesa queria penalizar. Contudo, suas flechas eram certeiras e pontiagudas demais. Num poema dedicado ao governador ele se dirige assim: A vós, merda de fidalgos/ A vós, escoria dos Godos/Filho do Espírito Santo/E bisneto de um caboclo/ A vós fanchono beato... e por aí vai. Tudo bem, se ficasse no papel, mas canções deste tipo, iam rapidamente para a boca do povo que se comprazia em cantá-las pelas ruas da Bahia. Corrupção, usura, abusos de poder, assassinatos, intimidades de concubinato e sodomia, tudo era parte do repertório do poeta e, consequentemente, do cancioneiro popular.
Hoje, é possível dizer que o devasso Gregório foi subversivo, mas dá uma certa inveja de não ver o gênero bem usado pela turma do Creu e congêneres. Não haveria campanha política que resistisse ao “Boca do Inferno”.

O JAPÃO QUE EXISTE EM MIM

O JAPÃO QUE EXISTE EM MIM

Sou filha de um português com uma iugoslava. Quando criança, em minha casa comia-se comida tipicamente européia, misturando bacalhoada com apfelstrudel. As variedades tinham data certa para serem feitas. Bacalhoada era própria da sexta feira santa; sonho de reis, tomava a cozinha no dia 6 de janeiro; rabanadas, no Natal, e torta de maçã, nos aniversários. Naturalmente, houve uma adaptação de pai e mãe à culinária brasileira, então, o excesso de batatas foi substituído por arroz com feijão, e os doces de fruta entraram no cardápio, substituindo o acúmulo de ovos dos doces portugueses.
Na década de 60, quando cursei um preparatório para vestibular, caí de pára-quedas no bairro da Liberdade. Ali, fui apresentada à uma nova modalidade de comida e também uma nova maneira de ver o mundo. Já na faculdade, eu vinha da Cidade Universitária até o centro de São Paulo, a fim de desfrutar do sabor e do pensamento filosófico e religioso do Japão. Aprendi os preceitos básicos do Budismo na Comunidade Soto Zen da Rua São Joaquim. Lá por perto, na casa do monge Ricardo, aprendi a comer e a fazer sukiaki; encantei-me com os suaves docinhos de feijão e com a beleza plástica dos sushis e sashimis. Meu paladar deu uma guinada de 180º. Ademais, o monge Ricardo me deu de presente um quimono das Olimpíadas de Tóquio, e pelo molde daquela roupa, confeccionei outras tantas. Fui do comitê de recepção dos então príncipes Akiito e Michiko, aprendi cuidados cerimoniais e consegui uma disciplina interior que muito me valeu para toda a vida. Assumindo o Budismo, levei de quebra o desprendimento, e bem poucos sabem como isso alivia o sofrer individual. Vim parar em Mogi das Cruzes muito niponizada. Não conservei a tradição portuguesa nem a austro-húngaro dos meus pais. Deixei este legado para minha irmã. No entanto, não dispenso a comida japonesa nem o silêncio interior que tanto me enriquece. Leio as linhas, as entrelinhas, vejo os desenhos e absorvo os vazios de fundo, ouço o silêncio e partilho na alma a leveza dos bambuzais. Entre Mogi e Japão, entre compaixão e austeridade, estou em casa, suave como uma gueixa e feroz como um samurai.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

A MORTE DE UMA CRIANÇA

A MORTE DE UMA CRIANÇA

Os meios de comunicação não param de falar disso. Isabella morreu, o pai e a madrasta foram denunciados como assassinos da menina, presos, soltos, presos novamente... e a transparência das investigações levadas a cabo pela polícia paulista foi um modelo para o que devia ser em qualquer assassinato, inclusive de crianças pobres, que ocorre a torto e a direito neste país de Cabral. Domingo é dia das mães, eu imagino como deve estar a mãe dela. Filho morto é antinatural, é pedaço arrancado da gente, é ferida que não cicatriza, é cadeira eternamente vazia, é mágoa que não estanca, é beijo que não se entrega, é roupa que não se lava, brinquedo em que não se tropeça.
Cada vez que morre uma criança, eu que perdi um menino assassinado pela ditadura militar, sinto uma nova gota de sangue correr pelo canto dos olhos, renovo o meu sofrimento e me amparo na dor da mãe que perdeu seu filho.
Nestes tempos de barbárie que estamos vivendo, todos os dias há lugar para esta dor. Não que eu reclame da cruel publicidade que se dá à tragedia de Isabella. Mas reclamo sim que nesta terra cheia de ofertas, haja tanta pobreza. Crianças morrendo de fome constituem um tipo de assassinato social. Crianças sendo entregues ao mundo erotizado dos adultos, são igualmente vítimas de crime hediondo. Crianças que não recebem a educação da família e do Estado como prevê a Constituição, são também vítimas indefesas de adultos inescrupulosos. E se quer saber mais, logo logo estas crianças estarão grandes e perpetuarão a sociedade da barbárie. Serão adultos sem controle e com a mesma cara fria do pai da Isabella, que está mais preocupado com o seu processo do que com a perda da filha.
E, para quem puder, um bom dia das mães.
Ivone Marques Dias

quinta-feira, 13 de março de 2008

A elegância do ouriço

A Elegância do Ouriço

Com este livro, MURIEL BARBERY fez muito sucesso na França. No Brasil a Companhia das letras prontamente traduziu a obra que trata de uma sátira à alta burguesia francesa através das observações da concierge (zeladora) de um prédio parisiense, reduto de altas figuras da sociedade local. Os grã finos vistos pelos empregados ou subalternos, eis um filão que tem dado graça às obras literárias dos últimos tempos, veja-se o caso de A casa de Virginia W., obra tratada neste mesmo Blog.
Considerando-se que A casa de Virginia W. foi composta a partir de documentos encontrados pela autora, MURIEL tem a seu favor construir uma ficção a partir de sua boa cultura filosófica. Ser ficção torna a obra leve, dá oportunidade de encadear formas de pensamento de figuras diversas e torna possível escrachar a narrativa com o provável coito de cachorros no elevador.
Mas a obra é inteligente mesmo. Todos os ganchos são culturalmente corretos. E só uma boa professora de filosofia poderia por em ridículo um diagnóstico de cistite idiopática hemorrágica em uma gata, seguramente traumatizada por ter seu dono dito que ela está gorda...
Ivone Marques Dias

Gracias por el fuego

Gracias por el fuego

MARIO BENEDETTI, escritor nascido no Uruguai em 1920, merecia mais divulgação na midia brasileira, inclusive um tratamento editorial mais persuasivo. Trata-se na verdade de um tremendo romancista que lida com o intimismo e que, da década de 1960 para cá só fez edulcorar um tanto suas construções literárias. Tomando como base GRACIAS POR EL FUEGO e, depois, como construção delicada, seu magnífico A TRÉGUA, podemos sem susto sair dos clássicos Gabriel Garcia Marques, Vargas Lhosa, Izabel Allende, Borges, Neruda, Carpentier, Paz e outros, para reconhecer um Uruguai onde o drama existencial de um personagem se torna o ponto de partida para o reconhecimento desta Suiça sul americana onde toda a corrupção se tornava possível e, descaradamente aniquilava qualquer questionamento. Estamos falando da década de 60, do poder da imprensa e do pré advento das ditaduras que assolaram a América do Sul.
GRACIAS POR EL FUEGO tem uma edição de 2006, traduzida para o português por Eric Nepomuceno e Maria do Carmo Brito (L&PM Pocket), que torna acessível aos brasileiros esta obra duramente censurada no Uruguai, na Argentina e na Espanha. Trata de um pai de família, dono de Agência de viagens, negócio que lhe garante bom status econômico, mas de maneira alguma, a felicidade. Filho de político e empresário da imprensa, seu próprio ganha-pão tem origem no dinheiro "sujo" que seu pai lhe emprestou. O nexo lógico da obra repousa num drama ético, adicionado a outros dramas existenciais que lhe roem as bases. Para resolver o drama, só lhe restam duas alternativas :- ou mata o pai ou consome-se na dor da impotência frente aos fatos da vida.
A narrativa de Benedetti é ágil, e os argumentos de meio século se colocam hoje com uma atualidade impressionante
Em A TRÉGUA, Benedetti coloca de lado a questão ético-política. Vê apenas o homem em vésperas de tornar-se improdutivo pela aposentadoria. (Ed. Objetiva, tradução de Joana Angélica D'Avila Melo)
Ambos os livros merecem um passeio do leitor brasileiro. Sem Benedetti, a literatura latino-americana seria mais pobre.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Espelho Partido

Espelho Partido

A primeira metade do século XX deu-nos da Catalunha o genial Picasso, que por razões óbvias, fez sua carreira na França, como outros intelectuaus da sua geração. Nas letras, pouco se fala de uma autora que tem obra densa e instigante. Refiro-me a Mercè Rodoreda(1908-1983) que, no Brasil tem apenas duas obras traduzidas pela editora Planeta.
O Espelho Partido foi escrito entre 1968 e 1974, e refere-se à uma saga familiar que tem por eixo uma belíssima figura feminina que ascendeu socialmente pelo viés do casamento. De peixeira que era, casou-se duas vezes com homens muito ricos e sobreviveu a ambos, não sem deixar um rastro de degeneração pungente para o período em que rola a história: Barcelona em vésperas de revolução popular. Neste caso também, a narrativa é muito percebida através das mulheres que trabalham na mansão de Tereza. Relações adulterinas, mentiras, incesto, fratricídio, voluptuosidade, tudo é percebido pelas lentes mais argutas de quem fazia a comida ou sevia a mesa. Esta leitura constitui um programaço para os apreciadores da boa escrita.

Virginia Woolf

Nada mais curioso do ponto de vista biográfico do que uma análise de personagem a partir da visão das empregadas de sua casa. Pois foi trabalhando em cima de documentos desta natureza que Alicia Giménez Bartlett contou da vida de Virginai Woolf. A partir do diário de uma empregada de nome Nelly Boxall, e sempre comparando com os escritos da própria autora inglesa, ela nos passa um perfil da vida de Virgina e seus relacionamentos com o grupo de Bloomsbury. As relações entre patrões e empregadas eram tensas, a cada dia mais neuróticas, e desse cotejamento de dados, é possível vislumbrar a Inglaterra nas primeiras décadas do século XX. O livro de Alicia Giménez Bartlett chama-se A CASA DE VIRGINIA W. Foi editado pela Ediouro em 2005 e é um prato quente para quem quer se divertir.

Para uma autora angustiada como Virginia Woolf que se suicidou em 1941, parece ironia que tenha escrito uma das pérolas do bom humor inglês. Trata-se de FLUSH, memórias de um cão. Neste livro, virginia se coloca na pele do cocker spaniel Flush, animal de companhia da escritora Elizabeth Barret, moça semi-inválida que fugiu para casar-se com o poeta Robert Browning. O cão acompanha o casal da Inglaterra até a Itália, onde fixam moradia. Virginia Woolf entra no ego do animalzinho para dar alfinetadas na sociedade inglesa do período vitoriano, e o faz com muito êxito, tanto que este livro foi o mais vendido da carreira da escritora. No Brasil, foi editado pela L&PM em 2003. Vale a leitura, paga a diversão.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

FELINOS

FELINOS

Gosto de gatos. Não me lembro de uma única época da vida em que eles não estivessem presentes em minha casa. Neste momento são três a me alegrar. Tenho a Kika, cujo nome homenageia Almodóvar, meu cineasta favorito. Ao filho de Kika dei o nome de Gabo, um agrado ao gênio literário de Gabriel Garcia Marques. O mais velho deles, um gatão amarelo que pesa oito quilos, foi registrado como Puk, em lembrança ao duende atrapalhado dos Sonhos de uma noite de Verão, do Shakespeare.
Até bem pouco tempo eu era uma solitária felinófila, e muitas vezes tinha que escutar pessoas dizendo que os gatos são amigos da casa, e não do dono; falavam também de traição e vida vadia, como se os animais só fossem viáveis na natureza pela sua funcionalidade.
De fato, o cristianismo não privilegiou estes animais. Na Idade Média, era comum emparedar-se gatinhos nas construções para o azar não cair sobre os moradores. Apenas os Egípcios creditaram aos gatos um poder especial. Eles cultuavam a deusa Bastet que era uma gentil felina do tipo dos nossos siameses, e que foi retratada com belas crias e em todos os tipos de material artístico.
Mas afinal, porque o cristianismo recusou conceder ao gato um status mais digno?
Você trabalhador, dona de casa, aposentado, estudante, seja lá o que for, já ouviu falar de liberdade? Você tem liberdade plena? Pode dar-se ao luxo de só fazer o que quer, dizer o que pensa? Claro que não. A pressão da sociedade é tal sobre o indivíduo, que ele jamais gozará de uma liberdade irrestrita. Tudo porque liberdade, para os humanos, vem atrelada à idéia de responsabilidade.
É aqui que entra a rejeição aos gatos:- os humanos, que tem na cabeça o problema da liberdade muito mal resolvido, sentem no gato o espelho de algo que eles jamais alcançarão. Preferem os cachorros, cordatos, servís e obedientes, aparentemente funcionais porque agridem sob as ordens do dono. Tudo a ver. Depois desta triste constatação, só nos resta lembrar o jargão publicitário: Bonita camisa, Fernandinho!

O CÔMICO NOSSO DE CADA DIA

O CÔMICO NOSSO DE CADA DIA

Umberto Eco, um dos meus demônios tutelares, avalia em uma obra sua o escritor Campanile, num artigo intitulado “O cômico como estranhamento”. Lá pelas tantas, conta um episódio de visita de banhistas a uma praia da Itália do Norte que, ao saírem da água doidos de fome, vão a um restaurante local onde o cozinheiro bate estupidamente a cabeça de um polvo contra a parede. É assim que se matam os polvos, mas o dono pretendia tão somente dar aos banhistas uma demonstração de que servia peixes realmente frescos. O inusitado fica por conta do destino do polvo. Tão logo todos entram no restaurante, o animal era devolvido a um tanque marítimo de onde só sairia no dia seguinte para ser submetido a uma nova sessão de pancadaria. Esse polvo vivia muito, até já se acostumara à tortura diária. No início, chegava a fugir para a cozinha pensando no suicida gesto de ser frito por engano. Agora, o sofrimento tornara-se a marca dos seus dias, tanto quanto os turistas imaginavam que os peixes eram pescados por lá mesmo. Além disso, nada lhe faltava, porque, para mantê-lo vivo, era muito bem alimentado. Queria apenas morrer, o que era improvável, ou então esperar a surra do dia seguinte para confirmar o frescor do pescado que, aliás, vinha de um mercado de Milão.
Esta narrativa de pânico e humor, foi talvez a primeira que Eco leu em seus jovens anos, e, se lhe calou fundo, a ele que sobreviveu à Segunda Guerra Mundial, é porque seguramente entende do gênero humano melhor do que muitos outros.
Temos todo o direito de nos identificar com o polvo de Campanile e Eco, porque vivemos uma situação bastante similar. A pancada nossa de cada dia serve ao mercado mundial que nos imagina frescos e prontos para um achatamento servil, sem direito a reclamos. No fim do dia vamos para os apês da vida assistir na televisão que o mundo é bom, felicidade existe. Dormir. Sonhar, talvez. Acordar, e voltar às porradas que, segundo a ideologia cristã, nos salvarão. Campanile não era cômico, nem Eco. Cômicos somos nós que suspeitamos ter força e não conseguimos fritar nossos cozinheiros.