quinta-feira, 27 de junho de 2013

FARROKH BULSARA



Depois de um tempo que não se fala em outras coisas senão protestos – e eu até acho que as pessoas tem mais que mostrar a cara e protestar mesmo – resolvi nesta semana falar de uma pessoa muito especial que já não está entre os vivos, mas deixou uma lição de força e tenacidade, fora uma obra cultural imorredoura.
 Esta pessoa, de nome Farrokh Bulsara, nasceu em 1946 numa ilha de Zanzibar, exatamente na confluência entre África e Ásia, e pertencia à uma classe privilegiada  pársi. Seu pai Bomi e sua mãe Jer eram funcionários da administração britânica e, quando Farrokh completou 8 anos, após passar pela cerimônia iniciática  Navjote no templo do fogo dos pársis do zoroastrismo, mandaram-no para um rigoroso colégio inglês em Bombaim, onde ele se mostrou aluno aplicado. Gostava de desenho, matemática, música e literatura; mesmo tendo uma educação rigidamente inglesa, mantinha ainda os princípios dualistas zoroástricos e, por conta de um prognatismo no maxilar superior que exibia seus dentes frontais com certo exagero, sofreu bulling no colégio.
Era um solitário. Mais tarde, conseguiu impor-se aos colegas, porém, apesar de sua sólida estrutura cultural que passou a incorporar conhecimentos de cinema e ópera, Farrokh acabou não concluindo seus estudos por ter sido denunciado por um colega sobre comportamentos que tendiam à homossexualidade. Voltou a Zanzibar a tempo de assistir a episódios sangrentos contra os pársis, então sua família mudou-se para Londres.
Foi em Londres que o poder criativo de Farrokh desabrochou. Seu nome foi mudado para Freddie e ele começou a participar de bandas musicais. Com uma delas, acabou tornando-se famoso. O patinho feio virou cisne e era então o Freddie Mercury que liderava a banda “Queen”, tornada sucesso devido à musicalidade bem equilibrada e à concepção cênica das apresentações que ele mesmo desenhava previamente. Em sua vida musical, Freddie enriqueceu muito.
 Também mostrou seu lado bi-sexual, tendo uma mulher de nome Mary que o acompanhou até o fim , e um caso fugaz com uma alemã, durante o tempo em que morou numa mansão na Suiça. Suas apresentações musicais eram apoteóticas; sua vida de shows exigia muito do músico cantor, que abusou do álcool e da cocaína. Nada disso porém o derrubou. Como muitos da sua época, tornou-se portador de AIDS, doença que o vitimaria em 1991, aos 45 anos.

Como posso, quase um quarto de século depois, esquecer as performances dele e de Monserrat Caballé em Barcelona? Ou How Can I Go On, com a mesma diva? Esse menino teria sobrevivido ao regime dos aiatolás? Eu o celebro no entanto. Todo aquele que nega espaço ao diferente, está negando à humanidade o direito à emoção e ao jogo confuso da vida. Pois a vida é assim.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

O DESPERTAR DAS MASSAS

O que temos visto nos últimos dias no Brasil é uma movimentação revoltada do povo, de princípio devido aos abusivos aumentos do transporte público. No entanto, por trás dos protestos aparecem muitos fatores que de sobra são um bom motivo para a grita coletiva. Na verdade, o Brasil está com uma inflação acelerada novamente, as pessoas embarcaram em empréstimos bancários cujos juros escorcham os usuários, a classe média foi sufocada e as verbas públicas se prestam a uma série de auxílios sociais que mais acomodam do que estimulam a população carente.
Quem não tem competência não se estabelece. Era esse o velho ditado que se usava para falar dos fracassados ou dos pretensiosos. E havia também em nosso país uma rançosa crença de que o povo é pacífico e se contenta com pouco. Pois nesses últimos dias, a quem prestou muita atenção nos movimentos que ocorrem por todos os estados brasileiros, ficou claro que a população está ficando mais seletiva. E também, essa mesma população exige transparência nos gastos públicos pontuando solenemente que não está mais a fim de ter apenas pão e circo. Isso fica bem claro nas manifestações que envolvem críticas aos bilionários estádios de futebol para abrigar as Copas e as Olimpíadas. Acontece que o Brasil é  um país emergente, e entre as prioridades estavam a saúde e a educação, ambas prejudicadas de longo tempo. Assim, fica bastante claro: não temos como bancar grandes eventos tipo copa e olimpíadas, mas o ex-presidente bufão nos jogou na garganta profunda deste monstro que consome o nosso dinheiro, enquanto crescem as filas nos hospitais e temos uma educação de baixíssimo nível.

Ao longo da História, muitas rebeliões ocorreram em época de práticas esportivas. Para quem viu o quebra-quebra dos últimos dias, deve ter ficado claro o ódio popular contra as instituições bancárias. Também, o mesmo ódio voltou-se contra a Assembléia do Rio que, invadida, foi destroçada por um grupo mais radical. E os Estádios de futebol são protegidos pela polícia como se fossem santuários de Meca. Ora, não é só pelo preço das passagens que o povo grita. Penso que há no inconsciente coletivo as imensas toneladas de grãos de soja que não foram embarcadas nos portos nem voltaram para virar leite para o povo. Os portos são insuficientes, mas a justiça social consegue ser ainda pior. Obras de porte como a irrigação de áreas da seca com águas do Rio São Francisco, estão paralisadas enquanto um jogador de futebol cretino declara que sem estádio não há copa. Ronaldo pode enriquecer com futebol, mas certamente não irá dar aos nossos filhos a formação que precisam. Nem enfrentará uma fila do SUS como eu, como você, meu compatriota.

sábado, 15 de junho de 2013

A LIÇÃO ESQUECIDA


Quando o florentino  Carlo Collodi em 1883 publicou seu romance infantil sobre Pinóquio, o boneco de pau talhado por Geppetto, a Itália era um país novo, uma vez que sua unificação aconteceu apenas em 1871 e, congregava pequenos reinos de influências diversas, portanto, uma cultura que se estendia dos valores austro-húngaros aos valores latinos. Como Collodi havia estudado teologia em sua juventude, foi um exercício moral em seu jornalismo, pregar, através da história de um boneco, os valores que deviam ser importantes na vida de uma pessoa. Podemos enumerar aqui alguns destes valores: coragem, lealdade, honestidade e obediência, uma vez que a cidadania depende de uma conduta regular onde as normas sociais estão impressas nas leis e nos costumes.
Minha geração foi criada sob esta perspectiva, tanto que em 1940 os estúdios de Disney se apropriaram do tema para criar um filme, fracassado por conta da guerra ou do apelo patético a virtudes que o próprio Disney não possuía (virtudes indigestas, como a de delatar comunistas dos EUA na política do Macartismo). Seu sucesso foi posterior, e os adaptadores incluíram na história personagens que não haviam feito parte da obra de Collodi. É o caso do Grilo Falante, amigo e uma segunda consciência para o boneco de pau. De qualquer forma, mesmo saindo fora da realidade criadora de Pinóquio, sua história era profundamente didática para as crianças do mundo ocidental do pós guerra, focando seus objetivos em estimular a verdade e a obediência. Esse binômio pedagógico é indiscutivelmente correto ainda que possamos questionar a parte da obediência, pois foi saindo fora dela que muita coisa se moveu no mundo até agora, considerando-se que grandes descobertas e avanços foram feitos por mentes inquietas que não se enquadravam no perfil do seu tempo..
 Sinto porém que, apesar do discurso ouvido desde a infância, quando se conta às crianças estas historinhas, o princípio doutrinal de Collodi se esvaziou. Nos embates de força entre verdade/mentira ou obediência/desobediência, os vícios tem prevalecido sobre as virtudes. Para falar só sobre o Brasil, ainda prevalece o jeitinho brasileiro de ser, a idéia de que o mundo é dos espertos, de que vence na vida aquele que leva vantagem em tudo, mesmo que isso signifique passar por cima dos direitos alheios, mentir ou omitir informações de interesse público, e por aí vai. Será que dá para crer nas estatísticas de criminalidade? Ou é possível aceitar os números que nos passam sobre as epidemias e doenças em geral? Ou que o dinheiro gasto com eventos esportivos não vai fazer falta para as obras sociais do governo? Ou que a turma do mensalão vai cumprir suas penas direitinho? Onde as autoridades mentem e cooptam com o ilícito, com certeza não há bons exemplos para o povão ser mais educado. E não há Grilo Falante que dê conta de tantos abusos. Pior, contaminam-se as gerações futuras.