terça-feira, 23 de outubro de 2007

Chão

CHÃO

Quando eu era menina, meu pai plantou no quintal de casa uma horta enorme apenas com salsinha. Sua predileção se explicava pelo fato de ele adorar fazer um aperitivo à base de azeite, aliche e muita salsinha picada. Só de lembrar, minhas glândulas salivares trabalham mais. Eu era muito pequena, de modo que ficava no meio do salseiro cujo vigor cobria-me as pernas até a altura dos quadris. E eu me orgulhava daquela selva particular. Minha mãe, por outro lado, entendia estes hábitos lusitanos um tanto bárbaros, e assim, no dia de reis ela fazia Sonhos, recheados de creme. Em outra época, parava a cozinha para abrir a finíssima massa do apfelstrudell, que depois, mal saía do forno, voava direto para nossas barrigas infantis.Tudo que podia vinha do quintal. As frutas, as carnes de ave, os legumes, as verduras, os ovos; também o quintal era o nosso parque de diversão.Nós subíamos nas árvores, corríamos atrás dos cachorros, andávamos de bicicleta, fazíamos bonecos de barro ou de espiga, assistíamos ao parto das cadelas, os pintinhos bicarem os ovos. Construíamos nossos próprios brinquedos, caso contrário, bordávamos e fazíamos tricô, principalmente no inverno e nos dias de chuva. No feriado de São João o mastro se erguia. Meu pai, sempre este gigante, juntava todos os galhos das podas, e montava uma fogueira. Trazia rojões, balõezinhos japoneses, minha mãe fazia bolo de fubá e nós não íamos para a cama enquanto o fogo não apagasse.Naquele tempo, meu pai não falava da derrotada revolução de 32. Minha mãe tentava esquecer os cadáveres que boiavam rio abaixo em frente à sua casa na distante Iuguslávia. Que havia lá no fundo uma forte dor reprimida, eu pressentia e hoje sei por que eles abriram as comportas das suas emoções. Foi só na velhice, nos tempos dos olhos baços e das palavras trôpegas. Que pena que houve tão pouco tempo para consolá-los. Mas, assim mesmo, entrecortando os silêncios, eles diziam: Não faz mal. Passou. Bendito seja esse nosso chão.Ainda durmo sobre os travesseiros vindos do além mar. Dos gansinhos que não vi nascer.

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