Este artigo é da autoria de minha filha MADALENA MARQUES DIAS, também historiadora
SOBRE
MULHERES, HOMENS E O ESTUPRO
Em tempos em que 58,5% de
entrevistados(as) pelo IPEAconcorda com a frase "se as mulheres soubessem
como se comportar haveria menos estupros", o relato de minha avó traz uma
atualidade impressionante:
“Quando eu era solteira
e morava no centro de São Paulo, há setenta e cinco anos atrás, os hábitos eram
muito rígidos. Até a véspera do meu casamento com o seu avô, namorávamos sob
intensa vigilância. Assisti dois casos de moças que engravidaram dos noivos ou
namorados, e por isso foram postas para fora da casa dos pais. O destino dos
recém-nascidos foi a roda dos enjeitados, lá na Santa Casa, e para as mães, só
restou tornar-se faxineira ou prostituir-se. Também acompanhei a história de outra
moça do meu bairro que o marido devolveu para os pais após a noite de núpcias,
alegando que não era virgem. Os exemplos estavam dados, sabíamos o que não
podíamos “cair na conversa dos rapazes”. Nenhum desses homens foi penalizado
pelas situações que criaram. Muito pelo contrário, eles eram promovidos
socialmente por serem os “bons”. Até hoje, quando me lembro dessas histórias,
fico muito revoltada. Por que é que a culpa tem que ser sempre da mulher?”
Minha avó é a moça mais alta da foto, aos 18 anos
Para além dessa desigualdade de
tratamento que permanece no discurso social, aponto que, ao concordar com essa
ideia, esses entrevistados(as) admitem que os homens não tem controle total
sobre seu instinto. Essa ideia é mais antiga do que se pensa. Na 33ª Surata
vers.35 do Corão, escrita no século VII d.C.: "Ó profeta, dizei a vossas
esposas, vossas filhas e às mulheres dos crentes que quando saírem que se
cubram com as suas mantas; isso é mais conveniente, para que se distingam das
demais e não sejam molestadas (...)". Consta que a mensagem era claramente
dirigida a Aisha, esposa mais nova do Profeta; contudo, com essa alegação, as
islâmicas firmaram o uso do hijab, até ele tornar-se um fator de identidade
religiosa.
A continuidade desse discurso no tempo e
sua amplitude espacial é compreensível para os historiadores, especialmente
aqueles que lidam com mentalidades e gênero: sabemos que a forma de pensar os
costumes demora muito a se modificar entre as populações. Contudo, isso não
quer dizer que seja um discurso aceitável. Quem afirma este tipo de coisa está,
por consequência, admitindo que os homens são animalescos por natureza, e cabe
às mulheres guardar a honra delas e da família; que os homens são perigosos às
mulheres pela força que naturalmente exercem, e que as mulheres são perigosas
aos homens pela sedução que naturalmente exercem. Solução: o recato delas é o
caminho da ordem. Para além disso, naturalizam uma determinada visão sobre o
estupro, que decorre de laços de poder violentos.Falta a muitas pessoas pensar
com maior consequência nas suas opiniões.
Isso não é problema entre homens e
mulheres somente,mas também entre mulheres e mulheres, homens e homens. O
caminho do debate está dado: nada mais cabível do que a Campanha “Eu não mereço
ser estuprada”, com uma marcada participação masculina, e fotos de mulheres em
nus parciais, com uma plaquinha sobre o corpo, se recusando à objetificação
sexual. Nesse momento, a internet – especialmente as redes sociais – ganha a
fundamental importância como foro. Nela desnudam-se aqueles machos convictos,reiterando
raivosamente seu poder, e ameaçando criminosamente as participantes (ah, sim,
eles não ameaçam os homens que participam da campanha com a mesma liberdade,
devo destacar). Desnudam-se também aquelas moças que usam da sua virulência
verbal contra as “periguetes estupráveis”, de maneira a se mostrar mais desejáveis
e mais prestas ao casamento no mercado nupcial em que as redes sociais também
se constituem.Bons tempos vivemos, quando tudo isso vem a público e leva ao
choque de opiniões que podem, inclusive, ser criminalizadas pelo conteúdo
ofensivo ou ameaçador.Antes não era assim; o silêncio selava, socialmente, a
continuidade da tradição.
Termino minhas reflexões com um recado
aos navegantes que crêem que “se as mulheres soubessem como se comportar haveria
menos estupros": peguem suas malinhas, entrem numa máquina do tempo, e
retornem à época de minha avó ou ao século de Maomé. Se exercitem nas relações daqueles
períodos. Assim, vocês talvez enxerguem o quanto manter esse discurso ainda hoje
é ruim para ambos os lados. É ruim para as mulheres, pois as submetem à
continuidade de uma teia de poder e submissão violenta, quando já desfrutamos
de tantos benefícios advindos de uma trajetória de liberação feminina e de uma
legislação igualitária. É ruim para os homens, por que os leva a se desumanizarem à
medida em que não devem falhar em sua força e no exercício do poder, em um
momento em que também se beneficiam pelo relaxamento das exigências sociais que
sempre pesaram sobre eles. Caso ainda reiterem sua posição, fiquem no passado e
não retornem mais. Agradeço.
Para
quem quiser consultar os resultados da pesquisa do IPEA: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2014/03/para-585-comportamento-feminino-influencia-estupros-diz-pesquisa.html