sexta-feira, 4 de abril de 2014

VIOLÊNCIA SEXUAL E DOMINAÇÃO



Este artigo é da autoria de minha filha MADALENA MARQUES DIAS, também historiadora



SOBRE MULHERES, HOMENS E O ESTUPRO
Em tempos em que 58,5% de entrevistados(as) pelo IPEAconcorda com a frase "se as mulheres soubessem como se comportar haveria menos estupros", o relato de minha avó traz uma atualidade impressionante:
“Quando eu era solteira e morava no centro de São Paulo, há setenta e cinco anos atrás, os hábitos eram muito rígidos. Até a véspera do meu casamento com o seu avô, namorávamos sob intensa vigilância. Assisti dois casos de moças que engravidaram dos noivos ou namorados, e por isso foram postas para fora da casa dos pais. O destino dos recém-nascidos foi a roda dos enjeitados, lá na Santa Casa, e para as mães, só restou tornar-se faxineira ou prostituir-se. Também acompanhei a história de outra moça do meu bairro que o marido devolveu para os pais após a noite de núpcias, alegando que não era virgem. Os exemplos estavam dados, sabíamos o que não podíamos “cair na conversa dos rapazes”. Nenhum desses homens foi penalizado pelas situações que criaram. Muito pelo contrário, eles eram promovidos socialmente por serem os “bons”. Até hoje, quando me lembro dessas histórias, fico muito revoltada. Por que é que a culpa tem que ser sempre da mulher?”

                               Minha avó é a moça mais alta da foto, aos 18 anos
Para além dessa desigualdade de tratamento que permanece no discurso social, aponto que, ao concordar com essa ideia, esses entrevistados(as) admitem que os homens não tem controle total sobre seu instinto. Essa ideia é mais antiga do que se pensa. Na 33ª Surata vers.35 do Corão, escrita no século VII d.C.: "Ó profeta, dizei a vossas esposas, vossas filhas e às mulheres dos crentes que quando saírem que se cubram com as suas mantas; isso é mais conveniente, para que se distingam das demais e não sejam molestadas (...)". Consta que a mensagem era claramente dirigida a Aisha, esposa mais nova do Profeta; contudo, com essa alegação, as islâmicas firmaram o uso do hijab, até ele tornar-se um fator de identidade religiosa.
A continuidade desse discurso no tempo e sua amplitude espacial é compreensível para os historiadores, especialmente aqueles que lidam com mentalidades e gênero: sabemos que a forma de pensar os costumes demora muito a se modificar entre as populações. Contudo, isso não quer dizer que seja um discurso aceitável. Quem afirma este tipo de coisa está, por consequência, admitindo que os homens são animalescos por natureza, e cabe às mulheres guardar a honra delas e da família; que os homens são perigosos às mulheres pela força que naturalmente exercem, e que as mulheres são perigosas aos homens pela sedução que naturalmente exercem. Solução: o recato delas é o caminho da ordem. Para além disso, naturalizam uma determinada visão sobre o estupro, que decorre de laços de poder violentos.Falta a muitas pessoas pensar com maior consequência nas suas opiniões.
Isso não é problema entre homens e mulheres somente,mas também entre mulheres e mulheres, homens e homens. O caminho do debate está dado: nada mais cabível do que a Campanha “Eu não mereço ser estuprada”, com uma marcada participação masculina, e fotos de mulheres em nus parciais, com uma plaquinha sobre o corpo, se recusando à objetificação sexual. Nesse momento, a internet – especialmente as redes sociais – ganha a fundamental importância como foro. Nela desnudam-se aqueles machos convictos,reiterando raivosamente seu poder, e ameaçando criminosamente as participantes (ah, sim, eles não ameaçam os homens que participam da campanha com a mesma liberdade, devo destacar). Desnudam-se também aquelas moças que usam da sua virulência verbal contra as “periguetes estupráveis”, de maneira a se mostrar mais desejáveis e mais prestas ao casamento no mercado nupcial em que as redes sociais também se constituem.Bons tempos vivemos, quando tudo isso vem a público e leva ao choque de opiniões que podem, inclusive, ser criminalizadas pelo conteúdo ofensivo ou ameaçador.Antes não era assim; o silêncio selava, socialmente, a continuidade da tradição.
Termino minhas reflexões com um recado aos navegantes que crêem que “se as mulheres soubessem como se comportar haveria menos estupros": peguem suas malinhas, entrem numa máquina do tempo, e retornem à época de minha avó ou ao século de Maomé. Se exercitem nas relações daqueles períodos. Assim, vocês talvez enxerguem o quanto manter esse discurso ainda hoje é ruim para ambos os lados. É ruim para as mulheres, pois as submetem à continuidade de uma teia de poder e submissão violenta, quando já desfrutamos de tantos benefícios advindos de uma trajetória de liberação feminina e de uma legislação igualitária. É ruim para os homens, por que os leva a se desumanizarem à medida em que não devem falhar em sua força e no exercício do poder, em um momento em que também se beneficiam pelo relaxamento das exigências sociais que sempre pesaram sobre eles. Caso ainda reiterem sua posição, fiquem no passado e não retornem mais. Agradeço.


 “Nem vem com papo de rapaz que daqui não sai nada. Sou moça de família!”.
Bonnie e Clide, anos 1920.  Disponível em: http://www.retronaut.com/retro/eras/1900-1999/1920-1929/


HISTÓRIA, LUTO E FESTA



Esta semana foi marcada por perdas e reconhecimentos interessantes para nós. Localmente, lamentamos o falecimento da Professora Doutora Geraldina Porto Witter, que foi uma grande cientista no campo da Educação. Minha professora nos tempos em que fiz meu bacharelado e licenciatura na USP, ela se consagrou como autoridade em carreira acadêmica, deixando linhagens de pesquisadores.

Mundialmente,  perdemos talvez o mais importante Historiador contemporâneo, o Medievalista  Jacques Le Goff, aos 90 anos em Paris. Para a formação de Historiadores em nosso país, ele foi a mais importante referência pois, sendo um continuador da Escola dos Annales, ampliou as novas perspectivas de análise dos fatos históricos e dos grupos sociais, introduzindo em suas obras o uso de outras ciências, como a antropologia, por exemplo. Compôs obras gerais sobre Idade Média, depois foi retalhando os segmentos da sociedade para promover a compreensão e avaliar o papel dos diferentes grupos na construção das mentalidades. Assim, estudou os intelectuais, os banqueiros e mercadores, o campesinato e a nobreza, demonstrou como a figura do Purgatório foi introduzida apenas no início do segundo milênio provando através de fontes arquivísticas que o desenvolvimento do comércio e da burguesia promoveram na Baixa IdadeMédia a idéia de que os pecados poderiam também ser negociados com Deus (parece bizarrice, mas não é) e, finalmente, deu lugar ao indivíduo na história indo além da biografia do santo rei de França S. Luis e biografando  também São Francisco, dentro da mais acurada metodologia de trabalho. E, por falar em metodologia e saber científico, foi ele também o autor majoritário do primeiro volume - Memória/História - grande enciclopédia temática EINAUDI, cuja cientificidade é absoluta em múltiplas áreas do conhecimento. Ali, ele saiu da roupa de medievalista para discutir em todos os planos "Memória, Documento/monumento, História, Calendário,  Passado/presente, Idades míticas,Progresso/reação, Antigo/moderno, Decadência e finalmente, Escatologia". Deixou um legado de sabedoria para os profissionais brasileiros da História, que pode ser qualificado de indispensável.

 

E finalmente, precisou um Jesuíta chegar ao Papado para que o papa santificasse aquele jovem jesuíta do século XVI que aos 20 anos deixou território espanhol  e veio para o Brasil, com Manuel da Nóbrega, fundou a maior cidade do hemisfério sul, em 1554, a nossa São Paulo de Piratininga. Defendeu os índios da escravidão, pacificou tribos e depois caminhou pelo litoral brasileiro, voltando para morrer no Espírito Santo aos 63 anos. Há um fêmur seu exposto no relicário do Pátio do Colégio,  onde nasceu São Paulo, a nossa impressionante metrópole.

  

HERANÇA MALDITA



Me causa espanto ver saudosistas apelarem pela volta da ditadura militar. O que pode ela corrigir se ainda não nos recuperamos da maldita de 1964? Só quem não viveu ou não leu nada sobre os 20 anos da dita cuja, pode sair marchando por aí pedindo a volta do regime de exceção, quando se torturava e matava por razões políticas e os direitos individuais estavam completamente suspensos.
 Foram 20 anos em que as escolas fizeram lavagem cerebral nos alunos. E hoje, que jovem sabe onde fica a Ucrânia? Para onde migraram a criatividade e a cultura que não tem mais espaço e dão lugar a idiomas e ritmos de guetos?E você, ama o Pancadão?Acha um barato que os professores não consigam dar aulas?
 Este cinqüentenário devia ser de luto, pois inaugurou a fase mais perversa da História do Brasil. Para mim, a lembrança daqueles 20 anos é a mais indigesta possível. Dolorosa. Fiz o curso de História na USP e formei em 1968. Em 1969 fui presa pela primeira vez. Meu pai, meu ex-sogro e um general da reserva foram atrás de mim no DOI CODI e as bestas feras de lá pouca atenção deram a eles, pois estavam comprazendo-se em torturar os presos. Eles sentaram e aguardaram. Lá dentro, depois de muitas horas fizeram minha acareação com meu ex-companheiro, o qual estava todo sangrado, mal andava, tinha os tímpanos lesados e muito mais.
 Nesta hora, no auge da tortura, mataram o operário Virgílio Gomes da Silva, que mesmo sob elevado grau de tortura não respondia nada. Então acabaram com ele. E de repente viram que haviam matado o homem mais importante da luta contra a ditadura depois de Carlos Mariguella. Aí, deram uma trégua, e até lembraram de me devolver a meu pai e ao General Lane.
Em 1972 casei-me com outro rapaz. Logo depois fiquei grávida do meu primeiro filho. Mas os malditos sabiam que eu continuava amiga da irmã do meu ex-companheiro e estavam a procurá-la. Então, caíram feito abutres sobre mim e, mesmo grávida, não fui poupada da tortura. Um capitão do exército, já embriagado, uma noite tentou me estuprar na sala de interrogatório. Foi nojento. Ele não chegou ao fim do seu intento, pois tinha outro casal para torturar.
 Então minha Odisséia acabou com o interrogatório de um certo capitão Bismarck. De lá fui para o hospital, onde quase morri, e meu filho, lindo, de 8 meses de gestação, faleceu com membrana hialina impedindo seus pulmões de respirar.
 Até hoje o governo brasileiro me deve este acerto de contas na Justiça. Mas, onde anda ele, tão estupradinho que está também pela corrupção? Então lembremos deste hino: "...eia pois brasileiros avante, verdes louros colhamos louçãos;seja o nosso país triunfante, livre terra de livres irmãos. Liberdade,liberdade"... É ainda melhor que qualquer ditadura. 


RETORNO DAS VELHAS SENHORAS





Quando as redes de TV, os jornais, as emissoras de rádio pedem carinhosamente que você ou seus filhos procurem o Posto de Saúde mais próximo da sua casa, simplesmente obedeça. Contrariar os programas oficiais de Saúde, significa dar um tiro no próprio pé. Desde que o bebê nasce, ele é submetido a vários testes importantes para se obter seu perfil inicial. Depois, vem as vacinas, e que ninguém se furte a essa obrigação para com seu filho, pois senão haverá uma força coercitiva por parte do Estado, no momento em que esta criança começar o processo de escolarização.  Mesmo assim, há doenças que já se haviam por desaparecidas, que ousam botar as caras de fora novamente. E isso ocorre tanto entre humanos quanto em animais, com os quais, queira ou não, o ser humano vai interagir pelo resto da vida.
Nesta semana, ouvi falar que uma senhora amiga adoeceu gravemente. Teve tuberculose. Essa doença que parece ter ficado no passado, e que vitimava os boêmios e desnutridos, tinha um tratamento de isolamento do paciente até que chegaram os antibióticos com espectros eficientes para curar. Assim, pouco a pouco, antigos parques hospitalares foram sendo desativados para dar lugar a imensos hospitais gerais, como é o caso do Hospital do Mandaqui. Também, uma doença discricionária que tirava os cidadãos do "mundo dos vivos" e os transportava para o mundo dos "esquecidos", teve a sua oportunidade de tratamento e cura: a hanseníase ou lepra. Os grandes sanatórios da era Getulina para onde eram encaminhados esses pacientes de maneira compulsória, isolaram comunidades inteiras a ponto de tornar os estigmatizados uma sociedade à parte, com mecanismos próprios de interação. Com o tempo, esse fantasma diluiu-se. Os antibióticos deram conta do mal e os leprosários foram se tornando hospitais gerais, ainda que ninguém goste de ser internado lá. Hoje, tanto a Tuberculose como a Hanseníase são tratadas ambulatorialmente, mas, contradizendo a batalha contra ambas que parecia vencida, assistimos aos avanços destas doenças com quadros diferenciados. E as cepas dos novos atacantes nem sempre respondem bem aos antibióticos tradicionais. Trágico, não?
Pior, outras doenças das quais não mais se falava, retornam entre humanos e animais, muitas delas como zoonoses. Viram esta semana o retorno do "Mormo", mal contagioso entre eqüídeos e também transmissível ao ser humano? E o que vamos fazer quando retornar a "Raiva" que se encontra escondida a esperar seu momento uma vez que os cães de rua vagam docemente como "comunitários" por aí? Você já viu um ser humano acometido de raiva? De hidrofobia? Ainda não, mas tenho medo que logo isso acontecerá. Sem remédio.






Em meados de 1980 eu me vestia para ir à USP fazer meu exame de qualificação para doutorado, quando um vizinho chamou contando que um cão estranho havia mordido meu gato no jardim. Pressentindo o pior, peguei uma arma e saí de carro com o vizinho acompanhando o trajeto do animal.
 O pobre cão parava nas poças d'água mas não conseguia deglutir. Andou bastante pelo bairro, circundou as duas grandes escolas de lá e, por fim entrou num quintal que parecia conhecer. Pulei rápido do carro e fechei o portão de grades para que ele não fugisse. Depois apertei muito a campainha para chamar os donos da casa, pois, ao estímulo da ponta da minha arma, o cão apresentava anisocoria que é um nítido sintoma dos muitos que a raiva apresenta. Começou a juntar gente, inclusive um delegado que morava em casa vizinha, e então, apontei meu revolver e atirei bem no coração do bicho. Entendendo a gravidade do caso, vieram uns pedreiros que trabalhavam em obra próxima e, com uma pá, ajudaram a colocar o cadáver  canino no meu porta malas.
 Voltei em casa, guardei o revolver, peguei meu material de pesquisa e me coloquei na estrada para São Paulo. Meu objetivo era, antes de chegar à USP, passar no Instituto Pasteur e deixar o cão para análise. Ele então foi recolhido pelas doutoras Ester Bocatto e Luiza Morita. Quando cheguei ao departamento da USP onde seria meu exame, já havia um telefonema aflito do Pasteur confirmando por exames laboratoriais a Raiva, já em estado avançado no animal. Assim, retornei a Mogi, com a enorme tarefa de iniciar uma prospecção a fim de saber em quais pessoas o cachorro havia tocado, pois precisavam ser notificados da carência de vacinação. Com o apoio das diretoras de escola, chegamos a quase 30 prováveis infectados, uma soma tão estarrecedora que o diretor do Instituto Pasteur veio a Mogi para implantar aqui um posto avançado de vacinação humana (o SUS não existia ainda). Como os Postos de Saúde não funcionavam nos fins de semana, o Dr Melquíades ficou encarregado pela Prefeitura, de montar uma sala dentro da Santa Casa para atender as vítimas do tal cachorro.
 Foi assim que, pela primeira vez tivemos vacinação humana aqui. Também a Prefeitura intensificou a coleta de cães de rua e a campanha de vacinação anti-rábica, de modo que ainda houve casos de animais doentes por quase dois anos, mas o alerta estava dado, e as crianças salvas.
Hoje, entreguei meu revolver à Polícia Federal. Mas a política eleitoeira de proteger os cães de rua, volta a nos ameaçar, pois as cavernas e grutas de Luis Carlos e Salesópolis continuam a abrigar morcegos hematófagos e, em breve, a Raiva voltará vitoriosa. (Em Memoria do Dr Moacir R. Nilssen que morreu vítima de combate aos hematófagos)